30/04/1998
Se bem me lembro, e acho que bem me lembro, era uma cálida noite de outono, aquela. Eu caminhava, meio distraído, pela Rua João Telles, quando ouvi, pelas janelas abertas, gritos de júbilo. Não me dei conta de imediato do motivo da celebração; foi só no dia seguinte, acho, que fiquei sabendo: o Estado de Israel havia sido proclamado. O Bom Fim não era exatamente a caixa de ressonância para um acontecimento que marcaria nosso século, entre outras razões porque a pequena comunidade judaica vivia muito voltada para si própria. Não recordo de ter ouvido alguém falar sobre o Holocausto; é certo que às vezes os adultos, olhos vermelhos de pranto, cochichavam entre si, mas aparentemente só com os anos é que as pessoas se deram conta da magnitude da tragédia.
Mas com o correr dos dias o orgulho foi se apossando de todos. A metamorfose era visível; a emoção se apossava dos judeus, uma emoção nova: o orgulho, nascido da dignidade recuperada. Já não se tratava de um grupo humano perseguido e humilhado, ameaçado pelas fogueiras da Inquisição, pelos pogroms e pelos fornos crematórios. Israel surgia no horizonte judaico como um farol luminoso em meio à noite sombria. Mesmo esta sensação, contudo, era marcada pela incerteza: a guerra havia começado de imediato e o novo Estado parecia desamparado diante de seus poderosos vizinhos. Dia a dia acompanhávamos o conflito pelo rádio e pelos jornais e lembro a apreensão com que li a notícia sobre o envio de armas checas a Israel. O apoio comunista, não seria aquilo contraproducente? Uma questão que, como muitas outras foi engolida pela História: a guerra terminou, os países comunistas deixaram de apoiar Israel e passaram a atacá-lo, e um dia deixaram de ser comunistas. Israel venceu seus vizinhos de novo em 1967, obteve territórios, mas não a paz, que continua sendo, como era em 1948, o grande objetivo a ser alcançado.
O kibutz, que para nós, jovens, significava a materialização da utopia socialista, teve seu apogeu e entrou em crise. Em compensação, a ortodoxia religiosa, que antes era mais objeto de curiosidade que qualquer outra coisa, hoje é força política importante. O trabalho na terra, visto pelos pioneiros como a forma de redenção de um povo anômalo, perdeu em importância para a indústria ultra-sofisticada; a exportação da tecnologia é fonte de uma riqueza que elevou o PIB per capita de Israel a 17 mil dólares.
Cinqüenta anos depois recordo com saudade o garotinho que caminhava pela Rua João Telles. Para onde ia eu, mesmo? Para casa. Em maio de 1948 o povo judeu passou a ter casa. Muitas casas: em Israel, nos Estados Unidos, na Europa, em Porto Alegre. O mundo deixou para nós de ser estranho e hostil. Em maio de 1948 o judaísmo renasceu das cinzas. Para refazer a sua casa.