Publicado em 23/04/2000 na Revista ZH
Ao longo de seus 500 anos o Brasil colecionou muitas histórias: trágicas, cômicas, curiosas. Aqui estão três delas. Separadas por longos períodos de tempo, refletem um pouco daquilo que poderíamos chamar de “a condição brasileira”.
1 O homem que não quis ser rei
O título é de uma história de Rudyard Kipling, mas bem poderia ser aplicado a um insólito episódio de nossa história.
O ano é 1641. O Brasil é ainda colônia de Portugal que, em dezembro de 1640, conseguira libertar-se do domínio espanhol. Cerca de um mês depois a notícia chega à cidade de Piratininga. A futura capital paulista não teria então mais do que mil habitantes, divididos entre portugueses e brasileiros.
Os portugueses vibraram com a boa nova e quiseram de imediato fazer um público juramento de lealdade ao novo rei luso, dom João IV. Aos brasileiros, outra idéia ocorreu: já que Portugal se libertara da Espanha, por que não podia o Brasil se libertar de Portugal? De imediato organizou-se uma manifestação pública, com participantes entusiasmados clamando pela independência.
Só havia um problema: Portugal tinha o seu rei, o Brasil não. Mas logo um nome brotou de várias gargantas, o de Amador Bueno da Ribeira. Rico, inteligente, digno, tinha todo o perfil de um rei. Foram pois todos à casa de Amador Bueno para comunicar-lhe que ele agora era o rei do Brasil.
Só que Amador Bueno recusou o convite. Claro: não tinha palácio, não tinha governo, não tinha tropas para enfrentar Portugal. Ser rei era mais que uma fria, era uma gelada. A multidão, no entanto, não queria papo: ou aceita ou morre, era o que gritavam. Sem outra alternativa, Amador Bueno fugiu pela porta dos fundos. Fugiu para não ser rei. E foi pedir asilo no mosteiro de São Bento.
Hoje, quando os políticos agarram-se ao poder com unhas e dentes, é bom lembrar: houve, um dia, um brasileiro que não quis ser rei.
2 “Papai, o sr. me vendeu”
O ano é 1840. A cidade, Salvador da Bahia. É lá que vive um menino chamado Luís Gama. É um menino feliz, o filho de um casamento pouco habitual: o pai é um fidalgo português, a mãe, uma negra, dona de quitanda. A mãe trabalha. O pai joga. Joga muito. Perde fortunas. Isso não impede que seja amável e carinhoso com o filho. Cuida dele, leva-o a passear.
Um dia – 10 de novembro de 1840 –, o homem chega em casa e anuncia que vai levar o pequeno Luís para conhecer um navio que está ancorado no porto. O menino, entusiasmado, aceita. De bote vão até o Saraiva. O pequeno Luís Gama corre de um lado para outro, deslumbrado. De repente, pára. Onde está o pai? Procura-o, não o encontra em lugar algum. Corre até a amurada. Lá está o homem, afastando-se no bote que o trouxera, e garantindo que volta já. De imediato o garoto dá-se conta:
– Papai, o sr. me vendeu!
Verdade: para ter dinheiro, e continuar jogando, o pai o vendera como escravo. Luís Gama é levado para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. O alferes Antonio Cardoso, que o comprara, não consegue revendê-lo: Luís Gama é criança demais. Fica, portanto, com o menino. Trabalha na casa – e estuda, com um jovem que é hóspede do alferes. Mais tarde, torna-se soldado, e depois escrivão de polícia. E estuda, estuda sem parar. Torna-se poeta, jornalista, advogado, líder abolicionista. Uma história de sucesso. Uma história de tristeza infinita: Luís Gama, como muitos outros brasileirinhos, foi separado de sua mãe para sempre. Em nome dela, e em nome de muitos outros explorados, lutou até o fim.
3 Os ratos do Amaral
Rio de Janeiro, 1903.
Oswaldo Cruz é nomeado, pelo presidente Rodrigues Alves, diretor de Saúde Pública, cargo equivalente hoje ao de ministro da Saúde. Ao assumir, recebe uma decisiva missão: sanear o Rio de Janeiro. A então Capital Federal era assolada por várias prestilências: febre amarela, peste bubônica, varíola. Os navios estrangeiros recusavamse a ali aportar. O café, principal fonte de divisas para o país, não podia ser exportado. A dívida externa – já naquela época! – crescia sem parar. Sanear o Rio é salvar o Brasil.
Competente – ele acaba de voltar de um estágio no Instituto Pasteur, em Paris –, dedicado, resoluto, Oswaldo Cruz atira-se à tarefa com férrea determinação. Atacará doença por doença, por meio de campanhas sanitárias. A primeira, tendo como alvo a febre amarela, baseia-se no combate ao mosquito que, conforme demonstrado por Carlos Finlay em Cuba, é o transmissor da doença. Uma idéia que muitos, médicos inclusive, ridicularizam. Mas Oswaldo vai em frente e consegue diminuir substancialmente o número de casos.
O alvo seguinte é a peste bubônica, transmitida por uma pulga do rato. Trata-se, pois, de exterminar os roedores. Como foi feito em outros países, Oswaldo oferece uma quantia, 300 réis, para cada rato capturado. De novo, zombarias – e um bom negócio. Um homem chamado Amaral monta um esquema para vender ratos – muitos dos quais criados para este fim – ao governo. Breve, ele é credor de quase 10 contos de réis (o equivalente a uns 30 mil ratos). A quantia desperta suspeitas, Amaral é preso e confessa: sim, vendia ratos ao governo, mas ratos criados no Rio – ele não fazia como outros, que traziam ratos de Estados vizinhos ou até de navios estrangeiros. Como dizia uma popular composição da época, dedicada aos ratos: “Vou provar-te como sou mau. / Meu tostão é garantido / não te solto nem a pau”.