Publicado em 09/03/2003 na Revista ZH Donna
Quero juntar duas datas importantes evocando uma figura feminina que ilustra muito bem o que foi, há até bem pouco tempo, a trajetória da mulher na ciência
O 28 de fevereiro assinalou a quinquagésimo aniversário de uma das mais importantes descobertas científicas da História: a estrutura do DNA, o ácido desoxiribonucleico, substância responsável pela transmissão dos caracteres hereditários. Por outro lado, este 8 de março marca o Dia da Mulher. Pretendo juntar estas datas evocando uma figura feminina que ilustra muito bem o que foi, até há bem pouco tempo, a difícil trajetória da mulher na ciência.
Que o DNA portava informação genética sabia-se desde 1943. Mas não se sabia como o fazia, e para isso era importante saber que desenho tinha, afinal, esse DNA, de que átomos era formado e como esses átomos se dispunham no espaço. Isso desencadeou uma corrida entre centros de pesquisa. Dois deles se destacavam, ambos na Inglaterra: na Universidade de Cambridge, trabalhavam Francis Crick e James Watson; no King’s College, de Londres, Maurice Wilkins e Rosalind Elsie Franklin. Essa última veio a se tornar a figura mais polêmica (e dramática) da disputa.
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De tradicional família judia, Rosalind (Rosy) muito cedo planejou tornar-se cientista – contra a vontade do pai, para quem ciência não era carreira feminina: ele queria que a filha trabalhasse como assistente social e, embora tivesse posses, recusou-se a pagar-lhe os estudos. Uma tia, porém, assumuiu o encargo; Rosy foi em frente e doutorou-se em química por Cambridge. Aos que a conheceram, impressionava pelo talento, pela beleza, pela minuciosa dedicação – e pelo temperamento: era uma pessoa voluntariosa, difícil, e não muito chegada a sexo. Mas, no trabalho, era brilhante.
Usando Raios-X para estudar o DNA – as radiografias que fez eram obras-primas, pela precisão e também pela beleza – levantou a hipótese de que a molécula teria a forma de hélice, mas não quis adiantar nada sem provas mais concretas. Isso levou a uma briga com Wilkins, que decidiu mostrar os resultados de Franklin a Watson – sem o consentimento de Rosy. “Meu coração bateu mais forte quando vi as radiografias”, disse Watson. As imagens foram uma revelação. A partir daí ele e Crick aceleraram as pesquisas, e chegaram ao resultado que foi imediatamente reconhecido e que os consagrou.
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Contrariamente ao que sua imagem faria supor, Rosalind reconheceu o triunfo dos colegas e cumprimentou-os por isso. Àquela altura ela já estava em outra linha de pesquisa, estudando virus. Mas sua carreira seria curta. Morreu com 38 anos, em 1958, de câncer de ovário, o que pode ter sido uma conseqüência de seu trabalho: no afã de pesquisar a estrutura do DNA, Rosalind tomava pouco cuidado em evitar o risco da radiação.
Em 1962 a descoberta do DNA rendeu o Nobel de medicina e fisiologia – para Watson, Crick e Wilkins. O precoce falecimento de Rosalind evitou uma disputa, já que o Nobel só pode ser concedido a pessoas vivas – no máximo, no número de três. Viva, estaria ela neste trio? Pergunta interessante, ainda que melancólica. De qualquer forma, a posteridade fez justiça a Rosalind Franklin: nos últimos anos ela foi objeto de vários livros e artigos, filmes, e seu nome (junto com o de Wilkins) foi dado ao novo prédio de ciências do King’s College.
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A trajetória das mulheres na ciência – território classicamente considerado masculino – nunca foi fácil. O resultado disso é que o número de mulheres cientistas é pequeno. Mas então surgem figuras luminosas, como a de Marie Curie e da própria Rosalind Franklin, e mostram esta verdade fundamental: a vocação para a ciência não está unicamente no DNA masculino. Mulher no laboratório não serve só para lavar tubo de ensaio, serve para pesquisar e descobrir. O conhecimento é libertador e é para todos. É a lição do Dia das Mulheres. E é a lição da curta e emocionante vida de Rosalind Franklin.