O cavalo imaginário
Nós todos frequentávamos o mesmo colégio, naquela pequena cidade do interior. Um colégio privado, e muito caro, o que, para nossos pais, não chegava a ser problema: éramos, meus amigos e eu, filhos de fazendeiros. Nossos pais tinham grandes propriedades. E tinham muito dinheiro. Nada nos faltava. Andávamos sempre muito bem-vestidos, comprávamos o que fosse necessário para o colégio e gastávamos bastante no bar da escola.
Aos domingos nos reuníamos para andar a cavalo. Cavalos não faltavam nas fazendas de nossos pais, animais de puro-sangue e bela estampa. Cada um de nós tinha a sua própria montaria, e não estou falando de pôneis, aqueles cavalinhos mansos; não, estou falando de cavalos de verdade, cavalos que corriam muito e saltavam obstáculos. Estou falando de equitação, aquele nobre esporte. Nossos pais faziam questão de que fôssemos excelentes ginetes. Tínhamos até um professor, que nos treinava na arte de cavalgar.
Eu disse que cada um de nós tinha um cavalo, mas isso não é verdade. Havia um que não tinha cavalo. O Francisco.
O Francisco não era filho de fazendeiro. O pai dele tinha uma profissão humilde, era sapateiro. Na verdade, o Francisco só estava em nossa escola porque havia recebido uma bolsa de estudos – era um garoto muito inteligente e muito dedicado. Mas o que fazia em nosso grupo?
Boa pergunta. Acho que nenhum de nós saberia como responder. Diferente dos outros garotos da escola – a maioria dos quais nos detestava –, ele tinha por nós uma admiração que beirava a reverência. Sempre que podia estava por perto. Mais do que isso, oferecia-se para prestar pequenos serviços. Se um de nós queria um refrigerante, o Francisco ia buscar. Se um de nós deixava de apresentar o trabalho solicitado pelo professor, Francisco se encarregava de fazê-lo. Por isso, e só por isso, nós o tolerávamos. Por isso, e só por isso, permitíamos que andasse conosco. Durante a semana, bem entendido; porque no domingo as coisas mudavam. No domingo ele voltava para o seu lugar. Domingo era o dia de cavalgar, e, do alto de nossas selas, nós contemplávamos, altaneiros, o mundo a nosso redor. Como eu disse, Francisco não tinha cavalo. Isso não impedia que cedo já estivesse no clube hípico, esperando por nós. Ficava a olhar-nos, enquanto galopávamos de um lado para o outro. E nós gostávamos de tê-lo como plateia, porque nos aplaudia entusiasticamente. Mais do que isso, procurava imitar-nos: galopava de um lado para o outro, como se estivesse montando um cavalo imaginário. Nós na pista, cavalgando – ele, ao lado da pista, trotando de um lado para outro e gritando como nós gritávamos, aqueles brados que os cavaleiros soltam quando se entregam ao esporte das rédeas.
De um modo geral, achávamos engraçado aquilo. Não Rodrigo.
Era um cara desagradável, aquele Rodrigo. Mesmo nós, que éramos amigos dele, tínhamos de reconhecer: um garoto intratável, agressivo com os colegas e até com os professores. A má fama que o nosso grupo tinha devia-se sobretudo a ele. Mas a verdade é que tínhamos de aceitá-lo: seu pai não apenas era o maior fazendeiro da região, como também ocupava o cargo de prefeito da cidade. Rodrigo era seu filho caçula – e o mais mimado. Um garoto estragado, como dizia meu pai.
Rodrigo não gostou nada daquela história. E nos disse:
– Não quero mais saber desse tal de Francisco nos imitando.
Procuramos convencê-lo de que se tratava apenas de uma brincadeira. Inútil: Rodrigo estava furioso mesmo.
– Vou resolver essa coisa à minha maneira – garantiu.
Foi o que fez. Num domingo, enquanto Francisco cavalgava seu cavalo imaginário, Rodrigo se aproximou dele. Apeou e comandou:
– Desça de seu cavalo.
Francisco obedeceu: desceu do fictício cavalo.
Nós vamos fazer uma aposta – disse Rodrigo. – Se eu perder, entrego-lhe o meu cavalo. Se você perder, entrega-me o seu.
– Que aposta é? – indagou Francisco, numa voz trêmula.
– Uma corrida – disse Rodrigo. Apontou umas árvores, a uns duzentos metros de distância: – Até ali, e voltamos. Quem chegar aqui primeiro, ganha.
Lembro-me de que o sangue me subiu à cabeça.
– Olha aqui, Rodrigo – comecei a dizer –, você não pode –
Francisco me interrompeu:
– Eu aceito a aposta – disse, com voz firme, ainda que meio embargada. – Quero correr.
Foi uma coisa patética de se ver. Os dois se colocaram lado a lado e, a um sinal, começou aquela coisa maluca. Rodrigo simplesmente trotava em seu magnífico cavalo, Francisco corria atrás – sem conseguir alcançá-lo. Rodrigo foi até as árvores, voltou. Minutos depois Francisco, ofegante. Rodrigo mirou-o com arrogância:
– Parece que eu ganhei, não é mesmo?
Francisco, ainda ofegante, permanecia calado.
– Seu cavalo agora é meu – continuou Rodrigo. – E sabe o que vou fazer com ele? Vou soltá-lo no campo. Ele agora está livre, você não pode mais montar, entendeu?
Francisco, quieto. Rodrigo apanhou as rédeas imaginárias e foi até o portão do clube. Ali, espantou o suposto cavalo aos gritos. Feito isso, montou em seu próprio cavalo e foi embora.
Francisco nunca mais foi ao clube. Aliás, ele nem ficou na cidade. Segundo o pai, tinha ido morar com os avós num lugar bem distante.
Nunca mais o vi. Não sei o que foi feito dele. Dizem que vende automóveis, não sei. Mas tenho certeza de que sei com o que sonha: com um belo cavalo, no qual, montado, galopa à vontade por um imenso campo que não tem limites.
Moacyr Scliar. In: Pipocas / Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Ana Miranda. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 10-13. Coleção Literatura em minha casa; v.2 Crônica e conto.
A orelha de van Gogh
Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.
Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação… Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam deles, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.
Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre a trágica vida do artista.
Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:
– Achei!
Levou-me para um canto – eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice – e sussurrou, os olhos brilhando:
– A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.
O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.
Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.
– Que dizes?
Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:
– E a orelha?
– A orelha? – olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.
No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de van Gogh, anunciou, triunfante.
E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh – orelha.
À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.
– Falta de respeito!
Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:
– Era a direita ou a esquerda?
– O quê? – perguntei, sem entender.
– A orelha que van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?
– Não sei – eu disse, já irritado com aquela história. – Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.
– Mas não sei – disse ele desconsolado. – Confesso que não sei.
Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:
– E a do vidro? – perguntei. – Era a direita ou a esquerda?
Mirou-me, aparvalhado.
– Sabe que não sei? – murmurou numa voz fraca, rouca. – Não sei.
E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha – qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não – verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.
Moacyr Scliar. In: Pipocas / Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Ana Miranda. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 13-16. Coleção Literatura em minha casa; v.2 Crônica e conto.