O Médico
Por Dr. Germano Bonow*
O Estudante
Moacyr Scliar formou-se pela Faculdade de Medicina da UFRGS, em 1962. Nos tempos de estudante foi colaborador do jornal do Centro Acadêmico Sarmento Leite – CASL – de nome “O Bisturi”. Foi ali que publicou alguns de seus primeiros contos. Anos depois, por ocasião dos 80 anos da Faculdade de Medicina, publicou um artigo no jornal “Correio do Povo” e fez referência a esse fato e às críticas que então recebeu de um colega. Inicialmente achou que o mesmo não tinha razão, mas, anos depois, relendo o conto, aceitou e o reescreveu.
Fez política estudantil, participando dos movimentos pela reforma universitária e pela conclusão das obras do Hospital de Clínicas, (URGS) entre outros. Por ocasião da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, integrou o movimento pela defesa da constituição intitulado Legalidade.
Os estudantes de medicina compareciam aos atos políticos em frente ao Palácio do Governo – Piratini – para aplaudir Leonel Brizola e preparavam-se para as emergências, que podiam ocorrer na eventualidade de um conflito armado.
Quando estudante, também era Auxiliar de Administração do Governo do Estado, exercendo suas funções, primeiro, na Secretaria de Administração e, depois, no Hospital Sanatório Partenon da Secretaria da Saúde, quando iniciou o 5º ano de medicina.
Na época, fez concurso para prestar serviço no SAMDU (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência) e então, uma vez aprovado, foi lotado em uma das cidades da região metropolitana de Porto Alegre.
Anos depois, em seu livro “Cenas Médicas” narra essa experiência, que pelo texto foi muito marcante na sua vida médica:
“Meu trabalho como plantonista consistia em ir, num jipe ou numa velha ambulância, às vilas populares de onde provinham quase todos os chamados. O que via naqueles tugúrios me horrorizava; por vezes eram cinco, seis, dez pessoas amontoadas numa maloca pequena, abafada, fétida. Eu nunca tinha tido um contato tão íntimo com a miséria, nem na Santa Casa, nem no Sanatório Partenon, nem no Hospital São Pedro. Aquilo era uma coisa degradante, embrutecedora. Meu desespero me levava, por vezes, a uma situação de impotente irritação contra a resignação, a entorpecida passividade, o fatalismo daquela gente. Eu tinha a clara consciência de que pouco podia fazer por eles; a diarreia de uma criança repetia-se duas, três, quatro vezes, até o óbito pela desidratação. Ocorria-me que a solução do problema teria de ser coletiva; comecei a ir a rádio da cidade fazendo um rudimentar trabalho de educação para a saúde. Mas isso era pouco, eu sabia muito pouco. Na vida de todo o médico (ou, no caso, doutorando) chega um momento em que ele anseia por uma ação mais abrangente, não limitada à cabeceira do leito. O que lembra, a todo médico brasileiro, a figura de Oswaldo Cruz”.
Discurso na formatura de medicina, em 1962.
Foto: Arquivo Pessoal.
Scliar, primeiro sentado à esquerda, com a turma de Medicina da UFRGS.
Foto: Arquivo pessoal.
No fim do 6º ano foi escolhido orador da turma.
Começou o discurso citando Ferreira Gullar:
“Morrem quatro por minuto nesta América Latina…”
Ao longo do discurso narra as dificuldades de um brasileiro para chegar à Universidade, em especial à medicina.
Depois o vestibular, os cadáveres do primeiro ano, as cadeiras básicas,
“A Santa Casa repositório da doença de um estado inteiro.”
E as indagações do acadêmico:
“… há o quadro clínico da desnutrição, mas por que há a desnutrição?”
Então o orador também se referindo às enormes dificuldades do povo brasileiro e das inquietações da guerra fria e do sonho daquela juventude que no fim do ano de 1962 concluía a Faculdade, dizia:
“E mais ainda, quando desaparecer da face da terra o terror de uma guerra atômica, quando o direito de cada povo decidir sobre o seu destino for respeitado, quando desaparecerem as suásticas e os linchamentos de negros”.
O orador fala ainda da milenar profecia de Isaías: “e morará o lobo com o cordeiro e uma criança os guiará (cap. M, Vs), … “.
E conclui exortando os colegas a uma medicina realizadora.
Formatura de Medicina da UFRGS, 1962. Foto: Arquivo Pessoal.
O Clínico
Quando era interno da enfermaria 29, Scliar interessou-se pela clínica médica e foi selecionado para fazer residência no serviço do Prof. Rubens Maciel. Este serviço, Enfermaria 29 da Santa Casa de Porto Alegre, era uma enfermaria multidisplinar que desenvolvia atividades em muitas áreas, sobretudo a cardiologia, pneumologia e outras.
O responsável era o Dr. Rubens Maciel, notável clínico, extraordinário professor e também um brilhante intelectual.
Entre os assistentes havia um professor que se interessava pela nefrologia, Prof. Antônio Azambuja, e formou-se uma equipe de nefrologistas excepcional da qual fazia parte o Dr. Moysés Lerrer. Segundo Scliar, esses mestres estavam entre os que iniciaram a nefrologia gaúcha juntamente com Oly Lobato.
Scliar recorda:
"Infância é fundamental e sempre um bom começo para qualquer escritor contar sua história."
Ele refere também que:
“A gente tinha muito orgulho de pertencer a tal e qual enfermaria”.
Medicina e literatura, as duas grandes paixões de Scliar. Foto: Arquivo pessoal.
Ao mesmo tempo em que fazia residência, trabalhou no consultório do Dr. Rubens Maciel e era também médico do Sanatório Partenon, primeiro como interno, depois como médico concursado.
Em 1964, foi chamado para integrar a disciplina de Medicina Interna da Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre. As aulas eram na Santa Casa, assim passou a ser professor assistente da Enfermaria de Clínica Médica daquela Casa.
A Comunidade Israelita possuía em Porto Alegre uma casa lar para os velhos da Comunidade. Scliar foi o clínico deste grupo. Flávio Kanter em um artigo escrito no jornal Zero Hora comenta a atuação do “Dr. Mico”: “quando eu cursava o último ano de medicina, convidou-me para fazer o registro médico dos moradores geriátricos do então Lar dos Velhos, onde ele era clínico. Era preciso ter um prontuário completo de cada morador, mas ficava envolvido em necessidades médicas imediatas. Não conseguia tempo para mais nada. Quando colhi as histórias, vi que muitos falavam num Dr. Miqui com apreço e confiança. Demorei a entender que era ele. Seu apelido era Mico e lá, com sotaque predominante do Bom Fim, ele era o Dr. Miqui”.
Scliar em frente à ambulância da época. Foto: Arquivo pessoal.
O trabalho realizado no Sanatório aproximou-o da Unidade Sanitária São José do Murialdo. Este Centro Social foi o precursor no Rio Grande do Sul da medicina comunitária. Scliar mais alguns colegas (C. H. Tigre, A. Fishmann) eram os responsáveis pelo atendimento da tuberculose neste Centro Social, uma vez que o Sanatório dava cobertura à Unidade Sanitária.
Aos poucos foi se envolvendo com um grupo de sanitaristas que marcou época na história da saúde pública do estado e do país.
O Estado firmou um Convênio, com a União, através da FSESP (Fundação Serviços de Saúde Pública – Ministério da Saúde), que propiciou a formação de profissionais pós-graduados e trabalhando em tempo integral em saúde Pública. Scliar foi convidado a integrar o grupo e aos poucos foi diminuindo suas atividades na clínica.
Em um diálogo com Rubem Alves, ele lembra a fase de transição da clínica para a saúde pública:
“Eu me formei em medicina em 1962, trabalhei como clínico durante alguns anos, inclusive em um sanatório de tuberculose. Ali tive uma visão diferente da doença: constatei que esta podia ser vista como um problema da população, diagnosticada, prevenida e tratada; e o Brasil tinha um excelente programa, famoso mundialmente. Fiz então uma opção: fui trabalhar em saúde pública, o que fiz pelo resto da minha vida profissional”.
O Sanitarista
No início da década de 70, ele iniciou sua “especialização”, se é que podemos chamar assim, em saúde pública. Foi em Israel. Recebeu uma bolsa de estudos da OEA (Organização dos Estados Americanos) e foi ver de perto a medicina comunitária daquele país. Ele descreve no livro “O Texto ou a Vida – Uma trajetória literária”:
“… fiz um curso de medicina comunitária em Israel … conheci o sistema de saúde, visitei lugares históricos, reexaminei minhas crenças. Descobri que Israel era um país de tremenda vitalidade e dinamismo. E um país em que vivi grandes emoções. Lembro a primeira vez em que fomos ao Muro das Lamentações. Era uma sexta-feira à tardinha, o lugar estava cheio de religiosos que oravam, a cabeça coberta pelo xale de orações. Pequenas aves negras voejavam sobre eles … Era estranho e ao mesmo tempo comovente … As lágrimas me corriam pelo rosto”.
Fez um curso de saúde Pública na Escola de Saúde Pública, que tinha um convênio com a Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ/RJ – Ministério da Saúde. Estudou Planejamento Familiar em Tóquio no Japão e Epidemiologia em Massachusetts nos Estados Unidos.
Trabalhou na Secretaria da Saúde em postos chaves dos anos sessenta até a aposentadoria.
Convidado para trabalhar no nível central da Secretaria, Scliar deixou o Sanatório e foi trabalhar na Unidade de Planejamento, onde chefiou a Equipe de Educação para a Saúde. Ali, além de participar de um período de grandes mudanças, foi editor por muitos anos do Boletim da Saúde e de algumas outras publicações da Secretaria.
Entre as grandes mudanças, estava a substituição das palestras para grupos de risco com conteúdo educacional, pela utilização de meios de comunicação de massa: jornal, rádio e televisão. É claro que o contato entre a equipe de saúde e as pessoas trás bons resultados, mas rádio ou TV tem um efeito muito forte.
Scliar com o governador Jair Soares, Germano Bonow e Ellis Busnello. Foto: Arquivo pessoal.
O fato de ficar lotado na Unidade de Planejamento aproximou-o de todas as áreas programáticas da Secretaria. Assim, poderia auxiliar na área das transmissíveis, das crônicas degenerativas, da materno-infantil e nas demais áreas de atuação da Secretaria.
Algum tempo depois foi designado Coordenador da Unidade de Assistência Médica Integrada e depois Diretor do Departamento de Saúde Pública. Foi aí que seus conhecimentos de clínica médica somados aos adquiridos nos vários cursos de pós-graduação, foram extremamente úteis para a fase que antecedeu a criação do SUS. O convênio que unia o Ministério da Previdência ao da Saúde encontrou, no sul do país, uma excelente equipe da qual Scliar fazia parte. Foi o precursor de todos, o Convênio da Tuberculose, programa chefiado por Werner Otto, depois o Prev. Saúde, as Ações Integradas de Saúde, o SUDS e que acabaram resultando no Sistema Unificado de Saúde.
Nos anos de 1978, 1982 e 1986 um documento editado pela Secretaria da Saúde, que relatava a situação da Saúde no Estado sempre tinha a participação de Scliar, quer como editor, quer como colaborador.
Foi convidado para assessorar a Constituinte Estadual de 1989. Alguns anos antes foi um dos representantes do Brasil nas reuniões da OPAS/OMS em Washington onde se discutiam as Estratégias Regionais (das Américas) de Saúde para Todos no ano de 2000.
Por ocasião da 2ª Conferência Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (Porto Alegre – julho de 1996) teve uma importante atuação como Coordenador do Comitê Executivo, aliás, ao mesmo tempo em que ressaltava:
"A proveitosa convivência, o estabelecimento de laços de cooperação e de companheirismo entre pessoas que, vivendo em longíquos locais de nosso Estado, raramente tem a oportunidade de se encontrar”.
Dizia também:
“O SUS não é um simples aparato burocrático: ele é feito de seres humanos que sofrem, que lutam, que sonham com um futuro melhor para o Rio Grande e o Brasil”. Mas na mesma “Apresentação” do Relatório ele alertava “o SUS enfrenta hoje problemas de magnitude proporcional à tarefa a que se propôs. E é claro que só poderá vencer tais obstáculos mediante uma ação conjugada e solidária da população organizada. Em outras palavras, o SUS não é uma realidade pronta, acabada: precisa ser construído, um processo que se consolida com o debate amplo, e democrático”.
O Professor
A experiência iniciada nos anos 60 como professor de Clínica Médica, teve continuidade no Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Ciências da Saúde, onde foi assistente e, depois, escolhido pelos colegas, assumiu a Chefia.
Foi um dos que ajudou a construir a história da Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre. A Faculdade pertencia à Santa Casa e muitos colaboradores, entre eles Scliar, ao mesmo tempo em que davam aulas nas enfermarias de clínica atendiam aos pacientes internados.
A Faculdade Católica foi depois federalizada e passou à Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. Anos depois a Fundação agregou novos cursos e foi transformada em Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Palestrante no XX Congresso Brasileiro de Neurofisiologia Clínica, em 2005.
Foto: Arquivo pessoal.
Scliar participou de inúmeros congressos de clínica médica, de saúde pública e também de saúde do idoso. Além de congressista também integrava mesas, proferia palestras, conferências tanto em Porto Alegre, como no Brasil e no exterior. Foi algumas vezes ministrar cursos e palestras, como professor convidado, sobre a “Saúde Pública no Brasil” em universidades americanas. Participou de bancas de doutorado, proferiu aula inaugural, recebeu inúmeras honrarias, foi presidente de comissões examinadoras de concursos públicos, de comissão editorial de revista, em fim uma vida acadêmica intensa.
No fim dos anos 90, defendeu tese de doutorado na Escola Nacional de Saúde Pública – Fundação Oswaldo Cruz-RJ. O título da tese “Da Bíblia à Psicanálise: Saúde, Doença e Medicina na Cultura Judaica”, aprovado em 29 de outubro de 1999.
No livro Rubem Alves e Moacyr Scliar – conversam sobre o corpo e a alma. Uma abordagem médico-literária” (SaberesEditora), publicado em 2011, Scliar faz a seguinte observação:
“Fui descobrindo vários interesses na área; por exemplo, a história da medicina e da saúde pública. Sempre li muito para saber como pensavam os médicos do passado, sobretudo aqueles que enfrentavam doenças endêmicas e epidêmicas”.
De fato, uma parte de seus livros relata passagens da história, mostrando que o médico escritor, também se tornou um historiador. Alguns livros são só história pura, outros são mesclados de componente educativo com que o autor busca auxiliar o leitor a preservar a sua saúde.
Há um artigo publicado em ZH e transcrito para o livro “Território da Emoção”, 2013 (Cia. das Letras), que cita medidas que protegem contra o Alzheimer.
Já o livro “Do Mágico ao Social” cujo subtítulo é “Trajetória da Saúde Pública”, é história. Na primeira página refere que o Faraó Ramsés V teve varíola e a tuberculose foi diagnosticada em esqueletos de índios pré- colombianos. No capítulo das “Previsões”, fala do surgimento de novas vacinas e:
“Que será possível evitar ou tratar doenças hereditárias ou congênitas, que hoje matam crianças nos primeiros meses ou anos de vida …”
Em um artigo publicado em “Médicos (Pr)escrevem”, ao analisar as razões da legibilidade da letra de médico vai fundo no coração da profissão.
“Os velhos doutores sabem que a luta contra a doença não se apoia em certeza, mas, sim, em tentativas: dans la medicine comme dans l’amour, ni jamais, ni toujurs, diziam os respeitados clínicos franceses: na medicina e no amor, ‘sempre’ e ‘nunca’ são palavras proibidas. Daí a dúvida, daí a ansiedade da dúvida, da qual o doutor se livra pela escrita rápida. E pouco legível”.
Escritor, historiador, romancista, professor, sanitarista, Doutor são tantos os títulos que não se pode esquecer que em momento algum Scliar deixou de lado o viés clínico. A formação recebida em 6 anos de faculdade depois foi aprimorada no exercício da medicina clínica. Flávio Kanter, no artigo “Dr. Miqui”, retratou bem a visão dos pacientes sobre o médico Scliar. Os companheiros de trabalho, ao longo de muitos anos, puderam observar, e mais do que isso, nas vezes em que precisaram de um bom clínico, e recorreram a ele, encontraram no colega um amigo e um médico na acepção da palavra.
Dr. Mico nos deixou quase 50 anos depois de formado. Tinha sido orador da turma de 1962. Um discurso polêmico, que abordava desde as tradicionais referências aos parentes, amigos, esposas e esposos, colegas, professores e formandos até as grandes mazelas da humanidade. Ao término do discurso instava aos colegas:
“Prossigamos juntos, colegas. Hoje, é dia da formatura, quando o Brasil nos chama para o caminho da medicina honesta e realizadora, nós podemos responder, como tanta vezes o fizemos no curso médico: Estamos presentes”.
* Médico e político brasileiro, formado em 1968 pela então Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre, atualmente Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Foi por duas vezes secretário da saúde e do meio-ambiente do estado do Rio Grande do Sul e ocupou cargos no INPS e BRDE.