As primeiras lembranças pertencem, naturalmente, ao terreno do visceral, de modo que é inútil tentar reavê-las. A circuncisão é importante, decerto, e tantas outras cenas da infância, mas lá estão, no fundo do inconsciente, invisíveis, a não ser para os olhos da imaginação.
Mais adiante, contudo, as recordações surgem, ainda que imprecisas, como cenas de um filme velho e desfocado. Tenho, acho, três anos. Moro em Passo Fundo, não muito distante da região de colonização judaica no Rio Grande do Sul. Tenho três anos e estou parado numa rua de Passo Fundo, perto de minha casa. Estou parado, olhando a calçada. E o que vejo? Paus de fósforo queimados, tocos de cigarro, folhas secas.
Olho-os, angustiado, com uma enorme vontade de chorar. É que o tempo ameaça chuva — não, já está chovendo, já caem os primeiros grossos pingos — e aquelas coisas, aquelas pequenas coisas, que para mim não são coisas, mas sim criaturinhas vivas, dotadas de sentimento, logo serão arrastadas pela enxurrada, para desaparecer, para morrer. Desesperado, sinto que preciso fazer alguma coisa — mas o quê? Olho ao redor; diante de mim está a porta da Delegacia de Polícia, dando para um longo e escuro corredor. Não há tempo a perder: começo imediatamente a remover para ali os paus de fósforo , as baganas de cigarro, as folhinhas secas. Neste ponto, a recordação se esfuma e desaparece. (A mesma imagem surge no conto do escritor judeu-americano Delmore Schwartz, In Dreams Begin Responsabilities, de 1937. Nesta história, o narrador evoca, na tela imaginária de um velho cinema, a vida de seus pais; e quando o pai propõe casamento à mãe, ele grita: “Não o façam. Vocês ainda podem mudar de idéia. Nada de bom sairá disso, só remorso, ódio, escândalo e dois filhos de caráter monstruoso”. Ninguém descreveu de forma mais simples e pungente “o pathos e o cômico desespero do conflito entre os imigrantes judeus e seus filhos intelectuais” -Irving Howe).
O que pensar disto, tantos anos depois? Há muitas maneiras de interpretar o fato, se é que foi fato. Eu poderia ver no ocorrido apenas uma fantasia infantil, precursora, no máximo, de muita ficção a posteriori elaborada. Ou esta aflição que move os médicos, mesmo os de saúde pública, como eu. Poderia chamar em meu auxílio o velho Freud, que talvez visse ali a ansiedade da separação; ou o velho Marx, para mostrar que a solidariedade com os desprotegidos começa muito cedo. Ou Kafka, que sempre quis, e não quis, entrar na Casa da Lei.
E poderia pensar nesta evocação como uma memória judaica. O desamparo judaico. A ancestral sensação da terra estranha, da catástrofe iminente (os temporais da História). A eterna busca de um lugar abrigado, seja este lugar o colo da mãe, a casa paterna, ou o Estado protetor.
Não sei. As primeiras lembranças são assim: profundas demais, viscerais.