O sonho da psicanálise

Publicado em 13/05/1995 na coluna “A cena médica” da Zero Hora

Um dia, imaginava Freud, uma placa comemorativa seria inaugurada, com a seguinte inscrição: “Em 1895 foi revelado ao Dr. Sigmund Freud o mistério do sonho.” Cem anos depois, a descoberta de Freud é homenageada não apenas com placas comemorativas, mas com o triunfo da instituição que ele criou, a psicanálise. Que já não é apenas uma forma de tratamento, mas também uma pujante instituição cultural: conta com milhares de aflitos, realiza congressos e encontros e dá origem a uma verdadeira torrente de publicações.

O mistério do sonho desvendou-se a Freud graças a uma intuição genial. Até então, tinha-se a idéia de que o sonho informava acerca do futuro, de acordo com o modelo bíblico: José interpretando os sonhos do faraó e revelando os sete anos de vacas gordas e os sete anos de vacas magras. Freud deu-se conta de que, ao contrário, o sonho fala do passado da pessoa, e sobretudo dos desejos reprimidos para o inconsciente. Esta foi também uma descoberta revolucionária – e profética: o ser humano não é governado unicamente pela razão, segundo a concepção introduzida pela modernidade, mas ele está à mercê de forças obscuras que podem explodir com violência inesperada. O nazismo veio a demonstrar, para tristeza do próprio Freud, que este raciocínio estava inteiramente correto. quad. Para minha geração, a psicanálise adquiriu uma importância decisiva. Tínhamos o perfil adequado do analisando: éramos intelectualizados, carregávamos muitos e pesados conflitos (com os nossos pais, com o establishnent) e, sendo de classe média, podíamos pagar o tratamento. Que era revelador, e aliviante. Muitos de nós tínhamos passado pela experiência do comunismo, onde a individualidade é sufocada, mediante a culpa, pelo coletivo.

Só quem passou por uma daquelas terríveis sessões de crítica e autocrítica, instituídas pelo estalinismo, sabe o que é isto. A pessoa levantava-se, diante de um grupo, e acusava-se: eu não presto, não valho nada, não passo de um burguês miserável. Lembro-me da primeira vez que ouvi de um analista a frase que equivalia à completa absolvição: tu não tens culpa de nada. Podia até não ser verdade, mas que curava, curava. Os pesadelos do passado davam lugar aos sonhos do futuro. Era agora possível dormir em paz.Os psicanalistas também dormem. Alguns, inclusive, nas sessões. E por que não haveriam de dormir? Poucas coisas são mais chatas do que um neurótico dando voltas em torno ao próprio umbigo (mesmo que seja um umbigo simbólico), desfiando monotonamente as suas lamentações. É uma espécie de melopéia encantatória: a poltrona vai se tornando cada vez mais macia e, poupado do olhar súplice ou acusador de seu paciente, o analista dorme. E talvez até sonhe.

Com que sonha um analista? Sonha exatamente com aquilo que Freud sonhava: sonha em desvendar o mistério do sonho. Sonha que está ouvindo um paciente que lhe conta sonhos, e que interpreta estes sonhos com a mesma intuição do pai da psicanálise. Sonha que o paciente lhe diz: aqui, neste ano de 1995, tu desvendaste para mim o mistério do sonho; sem ser prosaico, tu és melhor que qualquer Prozac. A psicanálise do sonho realizou o sonho da psicanálise. Um sonho do qual toda a humanidade, de uma maneira ou outra, veio a se beneficiar.

 

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